04 agosto, 2008

O Conflito Israelo-Palestiniano - Uma Terra de Estrangeiros e Palestinianos

O passado e a memória histórica que mais directamente poderemos indexar às actuais problemáticas que compõem o rol de quasi insofismáveis marasmos partilhados entre os povos israelita e palestiniano reporta-nos à Guerra da Crimeia 1853-56. Aliás, como defende Ilan Pappe, a dicotomia entre as imagens de um futuro moderno mas conturbado por oposição a um passado conservador mas pacífico, que pauta aliás o comportamento e valores da comunidade palestiniana, é originária dos preceitos do acordo de paz celebrado entre o Império Otomano, que procurava assegurar as suas fronteiras nos Balcãs face à derrota russa czarista e ao tímido expansionismo austro-húngaro, e a Grã-Bretanha, cuja vitória no Mar Negro lhe assegurava a livre navegabilidade e “amigabilidade” no Mediterrâneo – eixo fundamental no comércio Oriente-Ocidente.

No entanto, antes de avançarmos com o significado e consequências do pedido em causa, importa recuarmos um pouco no tempo para auscultarmos as origens muitas vezes esquecidas, ou secundarizadas sobre este que foi o evento que representou um ponto de inflexão nas relações internacionais do século XIX. Na Terra Prometida da Palestina/Israel, habitavam aí diversos centros nevrálgicos das três grandes religiões monoteísticas: o Islão, Cristianismo e Judaísmo. Objecto de cobiças, fortunas, ambições e poderes, o domínio das cidades santas nessa região, nomeadamente Jerusalém, sempre sofreram com as consequências de numerosas guerras que remontam à própria expansão do império romano no Próximo Oriente.


Os últimos redutos das Cruzadas

Foi com o surgimento e crescimento do Islão, e constituição do Império Otomano e seus califados que toda a região caiu sob a esfera de influência de Constantinopla, conquistada em 1453. Contudo, a presença de fiéis cristãos, sobretudo católicos, e de judeus constituía um último reduto à presença estrangeira nesse território sagrado, e com uma convivência relativamente pacífica e tolerada, segundo padrões da época. Foi nesse espírito que foram realizadas as famosas Cruzadas cujo objectivo último seria a formação de um reino cristão na Palestina. Apesar do admirável e utópico esforço, tal não ficou tão longe de acontecer, pois os famosos templários chegaram a constituir diversos reinos situados entre Jerusalém conquistada e outros territórios no Norte, sem contudo atacarem efectivamente a origem das sucessivas vagas de combatentes islâmicos na Arábia e Norte de África. Por alturas do século XIV, o jugo muçulmano era absoluto.

Mas conforme avançávamos, as populações cristãs aí residentes apresentavam-se como leitmotivs para redobradas investidas sobre o Império Otomano quando qualquer um dos reinos cristãos da Europa, especialmente aqueles a ele adjacente, se encontravam numa situação de preponderância face ao adversário. Foi o que aconteceu com o Império Austríaco nos séculos XVIII e XIX, e Império Russo especialmente no século XIX. Ambos visavam adquirir uma posição estratégica de vantagem sobre o Império Otomano e sobre o opositor cristão, e a situação atingiu níveis de tensão que acabaram por resultar num conflito armado. Pretendendo proteger os povos cristãos do “opressor” otomano, a França de Napoleão III, ambicionando simultaneamente agradar ao Papa para legitimar as suas pretensões sob os reinos da Itália do Norte contra os do Império Austro-Húngaro, pede ao Sultão a atribuição do título de Protector dos Cristãos no território da Palestina, título esse atribuído tradicionalmente ao czar da Rússia.

Tratando-se de uma questão maior do que meramente semântica ou nobiliária, o czar Nicolau I alerta o Sultão para as possíveis consequências de alterar subitamente a sua histórica posição frente às suas populações cristãs caso o título fosse simultaneamente atribuído a um governador recentemente eleito de um país cuja participação na defesa dos interesses cristãos na região era ausente de qualquer menção digna de registo. Mais, a atribuição de tal título significaria o reconhecimento por parte do Sultão de um afastamento das relações em eixo Império Otomano-Rússia. Isto era perigoso por três razões: considerando os mútuos interesses na região dos Balcãs, o diferendo poderia suscitar controvérsias nas populações de múltipla etnia e religião nos Balcãs, região onde ambos tinham interesses; poder-se-ia agudizar da situação na Ásia Central que já antevia uma guerra aberta entre os dois países em relação à delimitação de territórios; e finalmente, à escalada conflitual com formação de alianças para o controlo dos Estreitos do Bósforo e Dardanelos, pontos estratégicos para o acesso do Mar Negro ao Mediterrâneo.

A resposta do Sultão teria, pois, que ser cautelosa caso pretendesse manter o status quo que, à altura e perante as conturbações internas que começavam a surgir, até poderia ser proveitoso para o Império Otomano. Não obstante, a História reza outra história.


O eclodir da Guerra

A Guerra da Crimeia foi um conflito armado que opôs numa primeira fase o Império Otomano e o Império Russo no Mar Negro e na Península Balcânica, tradicional foco de conflito entre as civilizações islâmica turcomana, ortodoxa eslava e protestante germânica, como ensinou Samuel P. Huntington no seu Choque de Civilizações. No Império Otomano oitocentista, as poucas comunidades cristãs que persistiam no seu credo e práticas, sobretudo nas cidades de Jerusalém, Haifa, Jaffa e Tabriz, constituíam um importante embora reduzido baluarte na retaguarda otomana em relação à influência e relações com a Europa. Representando uma minoria com um relevante desempenho económico, essencialmente nas áreas do comércio de manufactura artesanal e produtos agrícolas, esta comunidade cristã exercia funções de relativa abertura entre as cidades europeias em franca prosperidade e o Próximo Oriente em evidente declínio.

Neste âmbito, a estes elementos de abertura e cooperação opunham-se outros de conflito e tensão. Com efeito, o fim das invasões napoleónicas trouxera à Rússia de Alexandre I um invulgar período de estabilidade. A participação nas várias coligações anti-napoleónicas, nas quais a Prússia, o Império Austríaco e a Grã-Bretanha também participaram, juntamente com Portugal, permitiu-lhe iniciar aquilo que seria o seu projecto imperial, não colonial ultramarino mas expansionista continental em direcção à Sibéria e ao Pacífico. No entanto, este projecto admitia como realidade incontornável o conflito com o Império Otomano, cujas fronteiras alargavam-se até à Ásia Central. Assim, e negociadas algumas condições para a manutenção da presença turcomana na região carpática, a superioridade russa logrou um armistício que lhe reconhecia a suserana protecção sobre todos os cristãos da Palestina, ao que aos títulos nobiliários dos czares Romano seguir-se-ia a designação de Protector dos Cristãos.

Ao pedido endereçado ao Sultão turco, Napoleão III teve uma resposta afirmativa para contestação do czar Nicolau I. Em vésperas de confronto directo entre a França e a Rússia, subsequentes à diminuição do diálogo diplomático e preparação de tropas junto das respectivas fronteiras na Europa Central, o Império Austro-Húngaro promove ainda a adopção de uma medida conjunta para partilha do título entre os dois líderes, ao que a Rússia declina.

Assim sendo, Nicolau I decide avançar rumo à Valáquia e Moldávia, junto ao Mar Negro, por forma a conquistar território ao Império Otomano e ameaçar as forças austro-húngaras na região dos Balcãs. No entanto, não devemos entender este avanço como uma investida militar per se, antes uma manobra premeditadamente encetada para medir a eficiência e capacidade de resposta dos grandes intervenientes europeus em relação ao um expansionismo russo. Devemos acrescentar ainda que Nicolau I, nas vésperas da guerra, dirigiu-se à Grã-Bretanha para dialogar com o seu homólogo com vista a ajustarem-se políticas externas relativas a várias matérias, entre as quais os planos imperialistas de Napoleão III, os expansionismos para África e a questão dos Balcãs. Neste convénio, o representante da Grã-Bretanha tinha erroneamente deixado transparecer perante Nicolau I a ideia de que Londres não reagiria a uma investida russa contra o Império Otomano.


Avanços e recúos

Num erro cujas consequências poderiam ser sido multiplicadas por várias vezes, a Rússia interpreta a conjuntura como favorável ao seu avanço contra o domínio Austro-Húngaro e Otomano numa região onde pretendia projectar os seus intentos pan-eslavistas, e assim reclamar para si própria um acesso directo e privilegiado ao Mar Mediterrâneo e àquela que era a principal rota comercial do mundo, a ligação da Índia e Oriente à Europa.

No entanto, perante os avanços russos, tanto a Grã-Bretanha como a França fazem enviar as suas frotas do Mediterrâneo para os estreitos já referidos, com a missão de observação das manobras militares aí em curso. Face aos surdos apelos por parte da Áustria-Hungria, a Rússia decide então enveredar por um golpe decisor que destrói a frota naval otomana por completo na famosa Batalha de Sinope em Novembro de 1853. Esta súbita alteração na balança de poderes requereu a imediata intervenção por parte de Londres e Paris ao lado do Império Otomano, coligação à qual se juntou finalmente o Império Austro-Húngaro, perante a oportunidade de consolidar o seu domínio nos Balcãs e partilhar dos despojos dos vencedores.

No ano de 1854 começou o cerco à cidade russa de Sebastopol, cerco esse que durou até a meados do ano seguinte, durante o qual a frota russa para o Mar Negro foi completamente aniquilada pela superioridade das forças navais da coligação anglo-franco-otomana. Daí até à paz obtida em 1856 foi um ápice, com um resultado desfavorável a Nicolau I, com a Rússia a capitular.


As consequências na sociedade internacional

Desta guerra ressaltam importantes conclusões:

1) a Rússia vê impedido o seu acesso às águas do Mediterrâneo e às rotas comerciais sob o domínio britânico, condenando assim o seu crescimento económico e ascensão do seu peso político, económico e militar na Europa;
2) a Áustria-Hungria adia a bomba dos Balcãs, absorvendo os etno-nacionalismos e religião numa amálgama parcamente organizada e efectivamente dominada e controlada;
3) a Inglaterra reforça o seu domínio no Mediterrâneo, desta vez com a frota otomana igualmente aniquilada, sem uma ameaça russa, e com uma clara superioridade perante a França e Áustria-Hungria;
4) a França ganha protagonismo na cena internacional, com Napoleão III a sair vitorioso da sua primeira prova-de-fogo frente aos grandes intervenientes do sistema europeu, protagonismo aliás que lhe vai alimentar o ego pelas décadas seguintes;
5) a Santa Aliança é dissolvida, fazendo mergulhar a Europa num novo período de indecisão e de realinhamento de interesses e alianças perante novas ameaças.


A paz do Congresso de Paris de 1858

O armistício de Paris, como tínhamos dito anteriormente, constitui o momento de inflexão do regime político otomano. Embora conseguisse ver reconhecidas as suas fronteiras por parte das grandes potências europeias, e expelida a presença russa a Oeste do Danúbio, o Sultão foi obrigado a mostrar garantias de melhoria no tratamento e condição dos cidadãos cristãos no seu império, especialmente aqueles vivendo na Palestina. Procedeu-se então à abertura da primeira fractura que viria mais tarde a alargar-se e condenar todo o domínio turcomano na região.

De facto, o território da Palestina sempre fora administrativamente dividida entre as províncias de Beirute e Damasco, situadas a Norte de Jerusalém. Situada num centro periférico ao poder de Constantinopla, a governação dessas províncias era por vezes tida como uma região de amortecimento aos vários grupos étnicos e religiosos que ambicionam uma maior preponderância na condução das políticas do império. Salvaguardando-se dessas pretensões, os vários sultões turcomanos decretavam o envio de membros recentes da classe política, quer provenientes de famílias nobres guerreiras ou educadas nas escolas religiosas, estes territórios periféricos mostravam-se particularmente úteis para demonstrar a capacidade administrativa de jovens líderes. No entanto, a convivência com líderes aposentados que procuravam regiões menos trauteantes do império onde preparar o final de carreira e subsequente reforma, na Palestina habitavam duas realidades políticas distintas onde se partilhava uma busca por reformas audazes contrastadas por uma governação conservadora e tradicionalista.

Face a uma população sobretudo campestre e pequeno burguesa ligada ao comércio e ao cultivo da terra, os afazeres dos grandes centros urbanos passavam muitas vezes despercebidos nos curtos passos da História. Era frequente, pois, que governantes de cidades longínquas e sem comungarem das características culturais e étnicas dos povos autóctones fossem responsáveis pela boa conduta e manutenção da paz e da ordem nas poucas cidades palestinianas da época.

Nesse sentido, observamos uma completa ausência de uma politização do sentimento de pertença a uma comunidade sociológica inserida num contexto geográfico determinado, com uma percepção de uma história partilhada e de um sonho de futuro, conforme hoje classificaríamos uma Nação. Não é de admirar, portanto, que as sucessivas governações debaixo de vários líderes estrangeiros ou extra-comunitários fosse interpretado como uma ocupação territorial por substituição de regime político.

Assim sendo, com o advento da Guerra da Crimeia e a abertura de toda a sociedade otomana à influência europeia, primariamente veiculada pelo súbito influxo de relações comerciais, mas acompanhada pela transferência de ideias, conhecimento, padrões culturais, etc., cedo de demarcou o que aconteceu e aconteceria sempre que comunidades diferentes se encontram sob determinados condicionalismos históricos: à boa maneira difusionista, a cultura europeia desde logo assumiu uma preponderância nos vários campos da sociedade otomana, que lhe imprimiu um desenvolvimento a duas velocidades, uma modernista e outra conservadora.


A chegada da modernidade

A chegada da modernidade, como em variadas comunidades europeias, inclusive a portuguesa, trouxe com ela a primeira vaga de industrialização e surgimento de uma pequena economia de serviços, mas também na propagação de um certo ideal de prosperidade e desenvolvimento sócio-económico que incutia nos indivíduos uma percepção mais alargada de comunidade política e de inter-mutualismo que quebrava com as tradicionais lealdades religiosas ou tribais. Numa sociedade em rápida mudança, e pela constante permuta de ideias e conhecimentos, a sociedade palestiniana foi adquirindo ao longo dos finais do século XIX uma maior sensibilidade política que lhe permitia reclamar junto das elites locais uma equidade que antes não existira.

Desde logo, a mundialização da economia palestiniana pós-Crimeia incutiu-lhe uma reestruturação tal que emergiu de uma agricultura subsistência para outra de mercado ainda no decénio de 1860. Para que esta transição ocorresse, foi necessário abolir um sistema que persistia por vários séculos, e que segundo muitos analistas, era o maior impedimento para o desenvolvimento económico da Palestina. Desta forma, o sistema musha` consistia na redistribuição de territórios aráveis por clãs numa base rotativa em determinados períodos de tempo, mas que vinculava a posse desses territórios a um sistema governativo mais ou menos centralizado. Esta redistribuição e possessão era atribuída aos governos locais de Beirute e Damasco, e respeitavam princípios islâmicos de justiça e equidade entre toda a Um`ma. Não obstante, os efeitos eram mais nefastos do que os seus princípios, uma vez que considerável parte da população poupava-se a esforços de desenvolvimento e investimento no pressuposto que outros iriam ganhar com o seu mérito e trabalho. Como tal, persistia um sistema subdesenvolvido e sem perspectivas de melhoramento por iniciativa privada.

Por conseguinte, em 1872 assistimos à primeira grande reorganização territorial da Palestina, retirando-a da alçada de Damasco e atribuindo-lhe uma autonomia política distinta e sedeada em Jerusalém. Assim atribuía-se um maior peso geopolítico que contrastava com a ascensão de movimentos secessionistas patentes na Arábia com os wahhabitas e com a casa de Ali no Egipto. Mais uma vez, este estímulo externo, a somar-se à crescente influência europeia, é um factor decisivo em todo o desenvolvimento da Palestina no final de século XIX seguinte, e inclusive até ao final da Grande Guerra.


O fim de século otomano

O império otomano evidenciava, de 1872 em diante, uma significativa incapacidade em reformar todo o seu sistema imperial. Contando com uma numerosa e inadequada classe governante sedeada em Istambul e longe das várias micro-realidades que salpicavam o decadente império com vários movimentos secessionistas ou de marcada falha de estatização, assistimos em toda a década de 1880 uma procura incessante pela construção de um Estado moderno à maneira europeia.

O modelo francês adquiriu, neste período, uma importância fundamental. Com efeito, uma geração tinha passado desde o fim da Guerra da Crimeia e a influência europeia já tinha penetrado na sociedade palestiniana para além das cidades portuárias e grandes centros comerciais. A própria liderança na capital, consciente das múltiplas vulnerabilidades que enfrentava caso prosseguisse com a política imperial até então adoptada, correria sérios riscos de se desvalorizar em relação aos rivais europeus. Nesta óptica, procurou abolir todos os vestígios de uma herança tribal que tinha pautado a cultura turcomana no seio do império. Desde a substituição de um sistema agrícola musha` até à remoção de privilégios dos ulama, à reorganização territorial e administrativa com subsequente dinamização das potencialidades essencialmente comerciais, até a projectos de planeamento urbano para a Palestina em que acomodava os vários grupos sociais, respeitava agora aos grandes proprietários latifundiários e produtores agrícolas.

Procedeu-se, segundo estes ditames, a uma tentativa de laicização do aparelho estatal otomano em clara desvantagem face aos seus rivais imperiais europeus, que observavam um enorme expansionismo no continente Africano e que ameaçavam a sua integridade territorial no Egipto e Médio Oriente. Nesta desfavorável conjuntura, entende-se portanto o conjunto de reformas administrativas, económicas, políticas e militares que pautaram todo o fim de século otomano.


A Grande Guerra e o fim do império

Com o evidente logro das reformas institucionais e estruturais do império otomano, a chegada do século XX e o exacerbar das tensões internacionais que culminaram no deflagrar da Grande Guerra foram os responsáveis imediatos pelo derrube do império. Com efeito, a verdadeira fase inicial do processo que hoje designamos de conflito israelo-palestiniano tem as suas origens nesta guerra mundial.

Face à emergência e influência do movimento sionista, que teremos a oportunidade de explanar no próximo capítulo, o Reino Unido pela pessoa do Ministro dos Negócios Estrangeiros James Arthus Balfour faz emitir, endereçado ao Lord Rotschild, uma declaração em que manifestava o total apoio do governo de Sua Majestade à criação de um Estado para todo o povo judeu em Diáspora no mundo. Lord Rotschild, um eminente banqueiro e figura proeminente entre a facção Liberal de Inglaterra, comungava de um leque variado de contactos dentro do governo britânico e, paralelamente, era uma voz activa dentro da comunidade sionista. A declaração Balfour, nome pela qual ficou conhecida, surgia numa altura em que alguns movimentos independentistas começavam a surgir na região da Palestina onde o império otomano falhava em assegurar a paz pública e a lealdade a Istambul. Por conseguinte, a promessa de um apoio à causa sionista, desde que não envolvesse a violação dos direitos das comunidades não-judaicas aí residentes, era um manifesto voto de confiança e atractivo perante a comunidade judaica que prestaria um valioso contributo na última fase da I Guerra Mundial. Constituída por uma poderosa comunidade económica, com ênfase para a influência na banca e na gestão de grandes empresas exportadoras e importadoras de commodities, os membros da comunidade sionista começavam então a fazer valer essa alavancagem e a projectar junto do Reino Unido o seu projecto autónomo.

Contudo, e como em períodos conturbados tomam-se decisões necessárias, não necessariamente e moralmente adequadas, com a vitória dos Aliados e desmembramento dos impérios centrais, é através da figura da Sociedade das Nações, criada em 1919, que o Reino Unido é votado a potência mandatária para a região. Começava então uma nova frente de batalha que impelia a criação de um Estado que albergasse a comunidade judaica dispersa, e que simultaneamente observasse o bem-estar e respeito das comunidades autóctones. No entanto, com o desmembrar do império otomano e formação de unidades políticas independentes por todo o seu território, seria francamente difícil levar por diante essa primeira promessa e segui-la com o necessário zelo e celeridade que aproveitasse o vazio de poder otomano. Assim permitiu-se o surgimento da Sociedade das Nações e a atribuição de um mandato ao Reino Unido que, juntamente com a França, exerceriam o seu domínio sobre novos territórios no chamado Próximo Oriente.

A Declaração Balfour, como se lê de seguida, constitui pois um marco histórico na causa sionista cujas repercussões caracterizariam, mais tarde, um dos novos preceitos da ordem internacional pós-II Guerra Mundial. O interregno observado entre 1917 e 1948 será, pois, por ora analisado.

Declaração Balfour, 1917







A SdN e o Mandato Britânico

Com a chegada do domínio britânico à região sob o mandato atribuído pela Sociedade das Nações, o cenário antevia já algumas mudanças significativas desde a sua ocupação turcomana. Com efeito, as políticas implementadas no final do império otomano, todas coincidentes com a atribuição de uma maior autonomia administrativa, embora sujeita ao poder central de Istambul, visava a articulação das parcelas imperiais segundo uma estratégia delimitada para fazer face aos impérios europeus rivais. Assim, nesta tentativa de modernização, a iniciativa privada com um dos sectores que mais beneficiou desta modernização do Estado otomano, enquanto se procedia simultaneamente à abolição de antigos regimes feudais de predominância das elites religiosas e de um estado de sobrevivência.

O império britânico e sua lógica de dominação imperial mesmo que suavizada perante o olhar da sociedade internacional, foi uma de alguma permissividade face ao status quo então instalado por altura do império otomano pré-Grande Guerra. Com um aproveitamento quase que exclusivamente económico, com a manutenção das elites locais e do respeito pelos preceitos religiosos e consuetudinários, não admira portanto que existem as condições para que os primeiros movimentos independentistas emergissem de uma comunidade palestiniana marcada não só pelos processos de reforma acelerada imprimida na primeira década do século XX, como pela sua subserviência face ao mercado britânico.

Simultaneamente, a Palestina começava a receber com alguma frequência muitas comunidades judaicas provenientes sobretudo da Europa na década de 1920, o que por seu lado forçou uma abertura política que melhor promovesse a coexistência pacífica e manutenção da ordem cívica numa região geograficamente tão limitada. Assim, e sob o aval da SdN, a Grã-Bretanha procedeu então, como a França o fez na Síria e Líbano, a uma democratização do regime conforme alguns dos ditames ocidentais. Promovendo o diálogo público, a mobilidade de agentes económicos, alguma protecção social perante situações de quase escravidão que permanecia na paisagem rural, e estimulando a alfabetização social em massa, o Reino Unido foi incapaz de sufocar esses movimentos emergentes antes que evoluíssem para um verdadeiro movimento social de base ideológica religiosa.

Por conseguinte, a vaga de judeus vindos de uma Europa anti-semita a soldo de Adolf Hitler contribuiu para uma pequena revolução na administração mandatada por Londres. Responsável pela expectativa criada através da Declaração de Balfour e do seu apoio à Federação Sionista, e com redobrada responsabilidade graças ao mandato a soldo da SdN, a conjuntura parecia extremamente favorável aos judeus que procuravam na Palestina a sua casa contra os séculos de opressão e diáspora. Considerando apesar de tudo alguma resistência que surgiu aquando da divulgação da Declaração de Balfour, pois de certa forma era um documento que segregava os judeus como uma raça distinta das demais, o que levou inclusive o Congresso dos Estados Unidos da América a sancionar o escrito alegando que entrava em directo conflito com a sua política de emissão de nacionalidade aos judeus exilados da Europa (uma importante nova elite que cedo se apoderou dos principais aparelhos de Estado), a formação do Estado de Israel estava quase que premeditado com o advento da II Guerra Mundial.

Numa conjuntura de descolonização generalizada, tendo para isso criado a Commonwealth em 1923, o Reino Unido emitiu ainda em 1939 o célebre Papel Branco, em que previa o abdicar do seu mandato a favor de um Estado misto composto por palestinianos árabes e judeus na Terra Prometida, uma que vez que a imigração de um total de 450.000 judeus para a Palestina tinha concretizado os preceitos da Declaração Balfour. Face à revolta árabe de 1936-39, emergiam os primeiros sinais de uma vontade e planeamento de interrupção do mandato uma vez reunidas as condições ideais, isto é, finda a guerra. Com o reconhecimento da Delegação Árabe-Palestiniana para discussão de matérias relativas aos territórios da Palestina, os pretextos estavam criados para um pós-guerra algo conturbado.


Reino Unido e o Mandato Inglês na Palestina

Com a Declaração Belfour – dirigidas, em carta, ao presidente da Organização Sionista Britânica, Lord Rothschild, tal vontade de satisfazer ambos os objectivos – criação de um estado judeu e manutenção no território das comunidades palestinianas existentes – viria a provar-se demasiado antagónico para alguma solução breve poder ser alcançada. Este antagonismo mantém-se ainda hoje. Durante a I Guerra Mundial, os britânicos não só inspiraram e financiaram uma revolta árabe contra o Império Otomano como ocuparam terras palestinianas (e outras terras árabes) no Médio Oriente. Dado o término da guerra, a Grã-Bretanha manteve o seu controlo da Palestina através de um Mandato atribuído pela Sociedade da Nações em 1922, indo ao encontro da essência das palavras de Balfour. Contudo, no período posterior à II Guerra Mundial, a situação na região tornou-se insustentável para o Reino Unido, começando o governo de Sua Majestade a receber críticas dos dois lados. Os judeus acusavam os britânicos de adiarem demasiado, e já sem justificativas possíveis para tal, a criação do Estado de Israel e os árabes acusavam os europeus de dar as suas terras ao povo judaico para aliviar a sua própria consciência dos acontecimentos da II Guerra Mundial. Não apenas isto mas os árabes viam os judeus como colonizadores europeus que vinham oprimir o seu povo.

Por um lado, os sionistas, apoiados pelos norte-americanos e alguns países europeus, queriam que os britânicos abrissem as fronteiras da Palestina a todos os refugiados e sobreviventes do Holocausto nazi. Por outro lado, os árabes palestinianos temiam ser submersos numa emigração judaica em massa e pediam a Inglaterra para não permitir que tal acontecesse. De facto, os britânicos restringiram o fluxo humano em direcção à Palestina, acção que causou desconforto e frustração entre os judeus, levando-os a encetar ataques bombitas contra tropas inglesas estacionadas no território. Em relação à simpatia e auxílio histórico prestado por parte dos Estados Unidos à causa israelita, que aprofundaremos mais adiante, importa referir que a Inglaterra, com os seus laços imperiais às terras árabes do Médio Oriente, estava não só preocupada com a criação de um estado independente judaico como ressentia a posição de vívido apoio que o presidente norte-americano, Harry S. Truman, prestava abertamente aos Israelitas, acusando este de se preocupar apenas com os votos judaicos que isso lhe traria em tempo de eleições em território americano.

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